Desde o início da pandemia, a indústria turística teve sua atividade reduzida a quase zero. Empresas aéreas, hotéis, destinos e todos os equipamentos envolvidos em uma viagem viram seu faturamento despencar, gerando uma série de demissões em massa, pedidos de falência e recuperação judicial.
A iniciativa privada e diferentes entidades do setor vêm trabalhando para projetar um panorama de recuperação. Protocolos de bio segurança são lançados diariamente, na esperança de reconquistar a confiança dos viajantes. Algo que só acontecerá, de fato, quando uma vacina contra o novo corona vírus for descoberta e produzida em larga escala para imunizar a população.
Mas, engana-se quem pensa que o retorno será simples, bastando o espetar de uma agulha. Outro fator que pode dificultar a retomada do turismo é a situação econômica dos viajantes no momento pós-pandemia. Indicadores projetam uma queda de até 10% no PIB brasileiro em 2020, o que pode desencadear recessão econômica e aumento no número de desempregados.
Além disso, uma parcela dos que conseguiram manter-se trabalhando tiveram seus rendimentos mensais reduzidos em decorrência da crise. Dados divulgados pelo Ministério da Economia apontam que uma média de 36% dos trabalhadores com carteira assinada tiveram seus salários reduzidos ou seus contratos suspensos durante da pandemia.
Turismo LGBT , a salvação da lavoura
Apesar desse cenário apocalíptico, um setor da sociedade tornou-se a luz no fim do túnel para a indústria turística nacional. Após divulgação de uma pesquisa feita pela Associação Internacional de Turismo LGBT (IGLTA), que revelou que 64% dos turistas LGBTI+ brasileiros ainda pretendem viajar em 2020, uma verdadeira corrida do ouro foi iniciada. Empresas tradicionais do setor passaram a oferecer produtos direcionados.
No dia 14 de julho, a Visual Turismo, operadora turística pertencente ao Grupo CVC Corp, a maior empresa de turismo do Brasil, lançou sua campanha voltada para esse perfil de turista. São pacotes que contemplam, principalmente, roteiros nacionais. A comunicação exclusiva para agentes de viagens teve a consultoria da IGLTA e se preocupou em oferecer apenas destinos e empresas que já tenham tradição em receber esse público – ainda que, no Brasil, não haja tantos.
Perguntado se a pandemia acelerou a decisão da empresa em apostar no semento LGBT, Luciano Guimarães, diretor B2B da Visual respondeu que a vontade de atuar nesse nicho já existia. “Acreditamos que a retomada, juntamente com os índices de busca de viagens desse público, será uma alavanca a mais. LGBT é o primeiro selo de vários que a empresa tem em sua estratégia e planejamento junto ao mercado”.
Outro grande player do setor, a Orinter – operadora que já oferecia, mesmo que timidamente, alguns produtos para turistas LGBTI+, principalmente casamentos homoafetivos – passou a divulgar novos produtos voltados para esse público de forma mais agressiva. Apostando em viagens internacionais, a empresa lançou uma série de pacotes de viagens para as Prides (Paradas de Orgulho LGBT) que já divulgaram datas para 2021, como Nova York, Miami e Fort Lauderdale (EUA). A operadora ainda espera a definição da data de paradas, como a de Tel Aviv e a de Londres, para também oferecer pacotes para esses destinos.
Deixando claro que não são especialistas no tema, Jorge Souza, gerente de marketing da Orinter declarou que se preocupa com a questão da segurança dos turistas, por isso preferiram focar em destinos que já são consolidados no turismo LGBT. “Nosso objetivo é oferecer pacotes de viagens para destinos e equipamentos que já tenham tradição, políticas públicas e critérios de acolhimento e respeito ao turista LGBT, por isso, para começar vamos focar em pacotes para Prides em destinos que já são consolidados”, disse, em entrevista em exclusiva para a ViaG.
Clovis Casemiro, coordenador da IGLTA no Brasil, acredita que a valorização do turismo LGBT é um aspecto positivo diante da dificuldade trazida pela pandemia. “Apesar de, em um primeiro momento, parecer que se trata apenas de interesse no pink money, esse investimento no segmento LGBT de turismo pode nos ajudar a quebrar paradigmas e derrubar barreiras dentro do setor, algo que venho tentando fazer desde 1998. Isso vai forçar as empresas que precisam sair da crise a receber melhor nosso grupo de turistas e essa convivência vai ajudar a derrubar preconceitos e falsos estereótipos”, ressalta Casemiro.
A mesma linha de pensamento e seguida pela Câmara de Comércio e Turismo LGBT. Ricardo Gomes, presidente da associação, reforça que a movimentação e positiva de certa forma, mas precisa ser feita com cuidado.
“Quanto mais empresas interessadas no segmento, melhor. Isso mostra para o setor a forca de nossa comunidade. Porém, e importante que investimentos em treinamento interno, mudanças culturais e comportamentais aconteçam antes de sair por ai tentando atingir esse mercado. Quem não adianta o empresário achar que vai arrasar no faturamento sem um conhecimento profundo do comportamento desses publico. O projeto com certeza vai dar errado, e dando errado, ele vai querer culpar a própria comunidade LGBT “.
Desde 2017, o País já conta com um fórum para discutir a evolução do turismo LGBT no Brasil. O evento focado no mercado B2B, com participação apenas de agentes de viagens e operadores, tem objetivo de capacitar e ajudar esses profissionais a entenderem as demandas do turista LGBT, e dessa maneira oferecer um atendimento mais qualificado e produtos mais direcionados.
Mesmo sendo um case de sucesso, dobrando de tamanho a cada ano, o Fórum de Turismo LGBT do Brasil patina quando o assunto é participação de destinos nacionais. Segundo Alex Bernardes, diretor geral do evento, os destinos internacionais já descobriram o potencial do turista LGBT há mais tempo, algo que pode acontecer forçadamente com os destinos nacionais por conta da crise causada pela pandemia. Todavia, o executivo fez algumas ressalvas.
“Acho muito positivo esse interesse das empresas e destinos nacionais no segmento LGBT. Porém, é preciso lembrar que esse perfil de turista é mais sensível com relação a alguns fatores. Um dos objetivos do nosso evento e preparar esses profissionais para liderem com essas questões. Ajudar essas pessoas a oferecer um atendimento específico e de qualidade. As questões de sexualidade e gênero são pontos sensíveis nesse perfil de turista e podem se tornar uma experiência negativa em casos de conflitos. É fundamental para quem quiser receber esse público esteja preparado, caso contrário, o resultado poder ser negativo para quem oferece o serviço ou produto, e traumático para quem compra”, ressaltou Bernardes.
A MH Tour, operadora especializada em turismo LGBT, oferta pacotes focados nesse segmento, por meio de sua agência, a Viaje entre Iguais. No mercado desde 2005, a empresa ressalta a dificuldade em oferecer produtos de qualidade e que sejam, de fato, seguros aos LGBT.
“Uma das maiores dificuldades em montar produtos para serem comercializados para clientes LGBT é a certificação de que o que estamos vendo é realmente preparado para receber os viajantes. Na ânsia de faturar, muitos destinos e hotéis se oferecem como sendo LGBT friendly, mas não possuem nenhum tipo de capacitação ou treinamento interno, e isso é muito preocupante”, opina Marcelo Michieletto.
A intenção, segundo o proprietário do negócio, é que os clientes se sintam bem acolhidos nos produtos comercializados. “Olhares tortos, cama de casal negada, piadas internas, recusa de nome social e outros detalhes de atendimento mal prestado podem arruinar com a viagem de um LGBT e manchar nossa reputação. Para fazer a curadoria de serviços e hotelaria no Brasil eu desenvolvi umas perguntas que me ajudam a identificar se o fornecedor está atrás do pink money ou é autentico. Tem dado certo”, finaliza.
Turismo LGBT em números
Dados da Organização Mundial do Comércio indicam que a comunidade LGBT global tem um potencial de consumo de US$3 trilhões anuais e, de acordo com a Organização Mundial do Turismo, o segmento LGBTI+ é responsável por 10% do setor – a fatia é de 15% quando o crivo é a movimentação financeira.
Nos Estados Unidos, US$ 100 bilhões são gastos por ano em viagens feitas por turistas pertencentes a essa comunidade. Já na Europa, a Associação Europeia de Turismo LGBT (GETA), estima que o segmento movimente cerca de EUR 50 bilhões por ano. No Brasil, apesar de nunca ter sido feito nenhum levantamento oficial, a Câmara de Comércio e Turismo LGBT do Brasil, estima que essa população invista pelo menos R$ 150 bilhões por ano em viagens.
”Temos um projeto de pesquisa pronto em parceria com uma empresa especializada para descobrirmos de fato o tamanho desse mercado no Brasil. O projeto faz parte de um acordo de cooperação que temos assinado com o Ministério do Turismo. A pesquisa era para ter sido colocada em pratica em 2019, mas com a chegada do atual governo ao poder a pesquisa esta parada”, comentou o presidente da Câmara de Comércio LGBT do Brasil.
O caminho não é de tijolos dourados
Apesar das cifras impressionantes e sedutoras, alcançar esse dinheiro não é tão simples quanto parece. É preciso que a marca saiba construir uma imagem positiva dentro da comunidade, abraçando suas causas e devolvendo ações positivas que melhorem a vida dos LGBT.
Consultor da Mais Diversidade, empresa especializada em diversidade e inclusão, Ricardo Sales reforça a importância do comprometimento.
“A inclusão precisa ser um compromisso ético e moral das empresas. Isso vem antes do interesse de negócios. É importante entender as necessidades da população LGBT, saber dialogar com respeito e apoiar a comunidade de forma consistente. Do contrário, pode parecer oportunismo, o que certamente reverbera de forma negativa para a imagem da marca”, defende.
Exemplo de tarefa de casa bem feita, o Mato Grosso do Sul tem trabalhado para atrair os turistas LGBT. Muito além de uma simples comunicação, o destino se preocupou em fazer um trabalho de base. Uma parceria entre a Fundação de Turismo do MS, Prefeitura Municipal de Turismo de Bonito e o Sebrae do estado contratou uma capacitação dos profissionais locais que trabalham com turismo. O objetivo foi preparar os estabelecimentos para receber turistas LGBT.
Com avaliação super positiva, o resultado veio rápido e muito além dos limites privados. Poucos dias depois da capacitação, um guia de turismo local foi denunciado e preso por disseminar LGBTfobia em suas redes sociais. Na mesma semana, o prefeito de Bonito propôs um projeto de lei que proíbe qualquer pessoa que tenha denúncia por discriminação assuma um cargo público no município.